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Publicações sobre a Vila de Alcanhões

Ilustração de Miguel Antunes

Ilustração de Miguel Antunes

in Correio do Ribatejo de 25/11/2016

Uma contribuição para a história do ensino em Alcanhões - A Telescola

Em meados do século passado, em Portugal, continuar estudos para além da 4.ª classe era uma miragem para muita gente. Quantas crianças deixaram os bancos da escola quando fizeram o exame da quarta classe e começaram logo ali, com onze ou doze anos, a aprendizagem de ofícios que seriam para a vida?

A continuação de estudos estava disponível nas cidades ou em vilas mais importantes e o acesso dependia da capacidade das famílias para suportarem deslocações, muitas vezes com alojamento, o que não estava ao alcance de muitos no quadro de pobreza em que ainda se vivia.

Fundada em Portugal em 1965, oito anos depois das primeiras emissões de televisão, a Telescola viria permitir o acesso ao Ciclo Preparatório (5 º e 6 º anos) à população afastada dos grandes centros, levando através da televisão as aulas e os professores que asseguravam um nível de ensino que até então, e como referido, muitos não conseguiam alcançar. Localmente, a frequência das aulas e o desenvolvimento das aprendizagens eram assegurados por dois professores (ou professoras), um de ciências e outro de letras, que acompanhavam o visionamento das emissões e trabalhavam com os alunos as matérias de cada uma das suas áreas.

Apesar de desenvolvido pelo Ministério da Educação a disponibilização deste programa de ensino não era tão alargada como se possa imaginar, ficando a abertura dos Postos de Telescola quase sempre dependente de iniciativas locais.

Foi neste quadro que em 1968 a Telescola chegou a Alcanhões, por ação e grande empenho do Padre Poças – José Poças Ribeiro – que, à época, era pároco com residência nesta localidade.

Muitos dos jovens que nesse ano concluíram a “quarta classe” não iriam prosseguir estudos, alguns para sempre, outros até que fizessem catorze anos, idade em que se poderiam matricular nos cursos noturnos da Escola Industrial e Comercial. Nessa idade, os que já tivessem um ofício e uma bicicleta, lá se aventurariam ao fim do dia até Santarém, regressando noite fora pela escuridão do Choupal e da Estrada Funda, muitas vezes fustigados pelos rigores do inverno, confortados apenas pela esperança de pedalarem para um futuro melhor que conseguissem almejar.

A abertura da Telescola permitiu a muitos a continuação dos estudos sem interrupção, fixou na freguesia os que estavam para ir para Santarém e recuperou para a Escola alguns que tinham ficado pela quarta classe. Aos de Alcanhões juntaram-se alguns alunos da Póvoa de Santarém e de Achete que, assim, ajudaram a completar o grupo que garantiria o arranque e a sustentabilidade do projeto. Um grupo diversificado quanto às idades e à proveniência dos alunos, numa experiência enriquecedora que certamente ainda hoje é recordada e valorizada pelos que nela participaram.

No primeiro ano, o Posto da Telescola funcionou numa casa particular na Rua de Nossa Senhora das Maravilhas. A “casa de fora” adaptada a sala de aula, televisão num canto, mesas individuais forradas com fórmica castanha.

As professoras, a D. Judite e a D. Arlete, foram as primeiras monitoras; o Padre Poças dava Religião e Moral e substituía as professoras quando tinham que faltar.

As aulas eram à tarde, em emissão direta da RTP a partir dos estúdios do Porto.

A qualidade do ensino era elevada sendo reconhecida até na comparação com o Ciclo Preparatório lecionado nas Escolas. Realce-se, como exemplo, a língua estrangeira cujo professor era Francês e o livro era tão bom que chegaria a ser apreciado e utilizado mais tarde no ensino secundário.

Nos primeiros anos a Telescola não era de graça. Cada aluno pagava duzentos escudos por mês, mais vinte e cinco escudos para o mês das férias “porque era preciso pagar os ordenados às professoras”. Convém referir que aqueles duzentos escudos, que agora equivalem a um euro, eram muito mais do que um euro. Duzentos escudos, naquele tempo, eram muito dinheiro.

O recreio era na estrada, as raparigas jogavam ao ringue, os rapazes tentavam jogar futebol. Tentavam, porque o Regedor vivia do outro lado da rua e quase sempre recolhia a bola com ameaças de chamar a GNR porque era proibido jogar na via pública. Por vezes jogava-se badminton, com uma rede presa nas janelas das casas; quando passava uma carroça tinha que se tirar a rede e interromper o jogo.

No ano seguinte, a continuidade do projeto com a entrada de novos alunos, implicou a mudança da Telescola para as instalações da Escola Primária onde permaneceu até à sua extinção, decretada a nível nacional em 2000.

O Mundo Novo, jornal da Paróquia, publicava regularmente informações sobre a evolução do ensino e das ocorrências na Telescola, a que não faltava o quadro dos alunos com melhores notas. Na sua edição de Março de 1970 podia-se ler: “ Presentemente conta com 41 alunos (19 no 2º e 22 no 1º ano), tendo já desistido 2 alunos do 2º ano”. Já quanto ao aproveitamento escrevia-se no mesmo jornal: “ No meio de muita “miséria” que é sinal de pouca propensão para o estudo da maior parte, destacamos aqui os alunos que no 1º período tiveram média igual ou superior a 13,5 valores...” , apreciação que vinha acompanhada por uma lista com sete alunos do segundo ano e quatro do primeiro.

No termo do segundo ano havia o exame que haveria de determinar a conclusão do ciclo. Para os fundadores, as provas foram em Santarém, com fotografia de grupo nas escadas do Seminário. Todos, ou quase todos, continuaram o seu percurso nas escolas secundárias e alguns no ensino universitário. De certeza que, sem a Telescola, isso não teria sido possível.

Os que passaram pela Telescola terão as suas recordações, histórias e situações que, sendo de uma idade tão jovem, ficaram para sempre. Pela sua graça, relembro aqui as confusões provocadas pela pronuncia nortenha de alguns professores, nomeadamente a de Educação Musical que explicava os sons dizendo ”são”. Ficaram famosas as trocas do Som Maior e do Som Menor, pelos S. Maior e S. Menor como se aprendia na catequese.

A importância de ter frequentado a Telescola, no momento em que foi, cada um saberá avaliar e guardará para si. Este texto, nascido de profunda e sentida gratidão, apenas pretende contribuir para que nossa memória coletiva não perca nomes, iniciativas e factos que marcaram e enriqueceram a história de Alcanhões e de muitos dos seus habitantes numa área tão importante como é a Educação.


Jaime Cunha

Alcanhões, 10/11/2016


in Correio do Ribatejo de 28/07/2016

Feira de Santa Marta – Feira de Alcanhões

Aí está o fim de julho e mais uma Feira de Santa Marta a animar a nossa terra e a mexer com recordações arrumadas nas nossas memórias.

Lembro o tempo da escola – já lá vão cinquenta anos – a chegada das férias grandes e a espera pelos dias da feira.

O Arneiro, espaço daquele tempo para as brincadeiras e para os jogos de futebol da rapaziada, transformava-se com a colocação das primeiras varolas com bandeiras. Num canto do largo, junto às árvores de grande porte que havia onde agora está o parque infantil, instalava-se a primeira barraca de comes e bebes, feita com varolas e coberta com rama de eucalipto.

A festa começava muitos dias antes da feira quando chegava o Ti Américo das Peneiras, na sua carroça puxada por um burro, carregada de crivos e peneiras que eram o seu negócio. Trazia também um caixote de papelão cheio de livros de banda desenhada que faziam as delícias dos mais novos. Por aqueles dias os passeios da estrada transformavam-se em sala de leitura e os rapazes disputavam os livros de Cowboys, do Tio Patinhas, do Tim-Tim, e de outras aventuras que o Ti Américo, com paciência infinita, emprestava sem por isso cobrar alguma coisa. Quando chegava a feira e punha os livros à venda já estavam lidos e relidos.

Depois era a chegada de outros feirantes, alguns tradicionais e com estatuto de antiguidade e lugar cativo. Eram o Restaurante do Caniço, os Brancos da loiça, o homem dos barros, as quinquelheiras que vendiam bolas de serradura com um elástico. O fotógrafo à “la minuta” com um cavalinho de madeira para sentar os meninos e um cenário para fotografar grupos de forcados a pegar o toiro. Havia a feira do gado, em espaço próprio, por entre o arvoredo.

Ah! E o carrossel. Ficava o Arneiro cheio e o sucesso da Feira garantido. “Truca-truca na bolinha do Alverca! Mais uma corrida, mais uma viagem!” Cada volta dez tostões. Música, animação, alegria, voltas e mais voltas.

Quando vinha uma pista de carros de choque, então a Feira era mesmo uma coisa em grande.

Nos dias da Feira o Arneiro era enorme. Parecia que o espaço crescia e Alcanhões era o centro do Mundo. A iluminação montada pelo Manuel da Cunha, eletricista, dava a tudo aquilo uma vida, cor e magia que enchia as gentes de orgulho e ânimo para mais um ano de trabalho.

Lembro a feira dos anos oitenta quando em tempo de crise quase acabou. Não havia carrosséis, nem pistas de carros, os feirantes eram poucos, as pessoas quase desistiram da sua Feira.

Mas, felizmente, os executivos da Junta de Freguesia nunca desistiram e as gerações mais jovens deram outra vida à Feira. Reinventaram-na, puseram-na na sua agenda. Fazem-na fazer-se todos os anos. A forma e o formato são diferentes? São. Evoluíram, acompanharam o tempo.

Mas...HÁ FEIRA DE SANTA MARTA EM ALCANHÕES.


Jaime Cunha

Alcanhões, 15/07/2015


Correio do Ribatejo

Ao receber o honroso convite para escrever algumas palavras sobre o Correio do Ribatejo, no âmbito da celebração dos seus cento e vinte e cinco anos, aludindo à importância do jornal e à sua ligação a Alcanhões, confesso que senti algum constrangimento por recear não conseguir corresponder ao que o momento e, principalmente, o Jornal merecem.

No entanto, o respeito por um título com tanta idade e história justifica que tente ultrapassar essa barreira e procure respigar da memória a presença do Correio do Ribatejo em muitos momentos ao longo da vida.

Não posso afirmar que seja uma recordação, mas tenho a certeza que as primeiras letras que aprendi foram as dos nomes dos jornais. E, dentre eles, as de CORREIO DO RIBATEJO.

O meu avô Manuel, da Catrina como lhe chamavam, estabelecido com taberna e barbearia na freguesia e vila de Alcanhões, tinha sempre jornais para os fregueses lerem. Foi empoleirado nos bancos da taberna, a espreitar para o que os homens estavam a ler, que fui ouvindo notícias e comecei a perceber o sentido das letras e das palavras escritas. Para a escola só se entrava com sete anos feitos e até lá era no circulo familiar que se passava o tempo. Brincava-se muito e ia-se aprendendo com o que nos rodeava. Convenhamos que não me ficou grande jeito para taberneiro e, muito menos, para barbeiro. As letras aprendi-as razoavelmente e o ponto de partida foram os jornais.

Lembro-me do Melro, que vinha da Ribeira de Santarém com uma sacola azul, vendia cautelas e trazia O Século e o Diário de Notícias que apregoava de porta em porta. Não seria todos os dias que o meu avô lhe comprava o jornal; por um lado o negócio não rendia para tanto, por outro tinha muitos dias em que embirrava com o pregão gritado à porta da barbearia que o fazia acordar da sua madorna. Mas, como as notícias corriam devagar e o jornal permanecia atual durante alguns dias, lá dava o de um dia para os outros.

Mas, na mesa da taberna ou nos bancos da barbearia, havia sempre o Correio do Ribatejo, semanário regional. Chegava pelas mãos do carteiro, com uma cinta de papel onde vinha gravado o nome e a morada do destinatário o que lhe dava uma certa importância. Além disso era nosso, da nossa região e de quando em vez com novidades da nossa terra. A maior parte das vezes notícias da morte ou de missa por alma de alguém que tinha partido, o que toda a freguesia já sabia, mas, tradições são tradições e a publicação no jornal era quase obrigatória. De quando em vez lá vinha notícia de natureza diferente, quando os acontecimentos assumiam relevo na sociedade local, como era o caso de algum “casamento elegante” que merecesse coluna de jornal ou a novidade de algum filho da terra que acabasse estudos em grau académico superior, o que naquele tempo estava ao alcance de poucos e era alcançado por ainda menos. Fora disso, aliás como nos tempos atuais, Alcanhões poucas vezes era notícia ou, se o era, não seria pelo melhor dos motivos.

Uma vez por ano a Feira de Santa Marta justificava edição dedicada, com artigos a enaltecer a vitalidade da terra, algumas mensagens de esperança na concretização de melhorias na vila e publicidade aos muitos estabelecimentos e negócios que pontificavam na economia local - mercearias, talhos, tavernas, latoeiros, barbeiros, moagem, farmácia, camionetas de aluguer, casas de lavoura... Alcanhões tinha vida!

Era o Jornal que ficava toda a semana e que todos queriam ler. Que ficou sempre. Já passaram quase sessenta anos e o Correio do Ribatejo nunca deixou de ser presença nas nossas vidas. A taberna e a barbearia já foram, há muitos anos, mas o Correio do Ribatejo continuou a estar presente em muitos outros locais, acessível aos clientes dos estabelecimentos de porta aberta e a chegar às casas dos assinantes. Não é difícil recordar, na juventude, quando participante ativo no associativismo, recorria ao Jornal para divulgação de eventos culturais e desportivos. Se a vida em sociedade requer e implica comunicar, o Correio do Ribatejo foi durante muitos anos um agente de aproximação e de encontro. Para lá das publicações obrigatórias, por lei ou por tradição, o Jornal sempre manteve colunas de opinião, nunca deixando de lado temas da cultura, tradições e costumes populares, com particular relevância para Santarém e o Ribatejo. Não menos relevante e porque também daí vêm algumas memórias, uma referência às páginas de anúncios, importantes quando da procura de emprego, de casa para viver ou de prestadores de serviços.

É certo que o Jornal terá vivido períodos de menor fulgor. A sociedade mudou, os meios de comunicação evoluíram e chegaram a cada vez mais gente ganhando espaço e rapidez aos jornais. Houve um tempo em que o Jornal foi menosprezado por ser coisa do passado, mas o Correio do Ribatejo ficou, foi resistindo às modas do tempo, de cada tempo. Ficou naquele formato que lhe conhecemos e ficou o sítio, a casa que é referencia na geografia de Santarém. Perduram na memória de Santarém, do Ribatejo, pessoas que, também elas, foram e são referencias e figuras marcantes da cidade e da região. Personalidades cuja memória o Jornal vai perpetuando nesta sua fase de renovação e aposta no futuro.

Chegados aqui, neste tempo das tecnologias, das notícias em cima do momento, neste tempo veloz que nos parece fugir, continuamos a ter o Correio do Ribatejo, Semanário Regional, com 125 anos de idade, um século e um quarto de vida, renovado e a renovar-se sob o sugestivo subtítulo “Um Jornal para toda a família”.

Chegados aqui, neste tempo em que as crianças já não vão para a escola com sete anos feitos, em que certamente já não aprendem as primeiras letras nos jornais em papel, em que já não são artistas tipógrafos que juntam as letras para dar corpo a palavras e fazerem um jornal. Agora, com novos e cada vez mais aperfeiçoados instrumentos, outros continuam o Correio do Ribatejo mantendo a sua presença na vida dos ribatejanos. Num tempo em que tantas vezes as palavras são instrumentos da mentira, um jornal com tanta história, com tanta vida, feito com a vontade que se vai percebendo nas suas páginas, pode ser um instrumento da verdade.

Quando pessoas empenhadas nas causas de uma região e motivadas por uma matriz cultural que conjuga tradições, memórias, conhecimento, pluralidade, respeito pelo passado e visão de futuro, se unem na designação empresarial “ Verdade das Palavras” para darem vida ao jornal da sua cidade, da sua região, do seu Ribatejo, estamos de certeza, na presença de genuína vontade de prolongar com palavras da verdade uma vida que, como antes, se projetará pelas gerações vindouras.

Que daqui a muitos anos, alguém agora criança, tenha memórias de vida em que o Correio do Ribatejo sempre esteve presente.


Jaime Cunha

Alcanhões, 09/06/2016

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